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Serviço público de transporte coletivo e o ‘fretamento colaborativo’

São inegáveis as contribuições oferecidas pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação aos modos usuais de prestação de serviços. A concepção de ambientes totalmente digitais, nos quais se dão interações, operações comerciais e trocas encurtou distâncias, aproximou pessoas, e catalisou a formação de possibilidades inéditas para o exercício de atividades econômicas.

Naturalmente, o contraste entre esse mundo novo e o mundo antigo, analógico, burocrático e ineficiente, chamou a atenção para a necessidade de mudanças, sobretudo no ambiente da prestação de serviços públicos.

Ocorre, contudo, que a incorporação de novas tecnologias no contexto da atividade administrativa não prescinde de exame prévio e cuidadoso de sua compatibilidade com os postulados do regime jurídico-administrativo. É necessário que a superação de ineficiências produzidas pelo modelo atual de prestação de serviços públicos não produza resultados indesejados, sob a ótica do interesse público, que podem inviabilizar o próprio serviço público. Nesse contexto, é importante o debate sobre a figura do fretamento colaborativo, que, nos últimos anos, tem ocupado posição de proeminência nas controvérsias envolvendo a execução do serviço público de transporte coletivo de passageiros.

O fretamento, em qualquer de suas expressões (contínuo, eventual ou turístico) é modalidade privada de transporte coletivo de passageiros. Atualmente, em âmbito federal, é disciplinado pelo Decreto Federal nº 2.521/1998, pela Resolução ANTT nº 4.777/2015 e, mais recentemente, pela Lei 14.298/2022, que reforçou a vedação à venda de bilhetes de passagem em se tratando de fretamento (denominado, na lei, prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros). Há, também, diversas normas estaduais que buscaram disciplinar o tema – valendo mencionar, por sua notoriedade, a Lei Estadual nº 23.941/2021, de Minas Gerais.

A seu lado se desenvolve o serviço público de transporte coletivo, usualmente explorado pelo Estado sob regime de concessão, autorização ou permissão (arts. 21, XII, “e” e 30, V, da Constituição Federal). Por se tratar de serviço público, sobre tal atividade incidem as normas conformadoras do regime jurídico-administrativo; isto é, um plexo de princípios e deveres, de natureza constitucional, legal e mesmo infralegal, orientadores do regime jurídico da prestação dos serviços públicos pelo Estado.

Essa distinção, ao contrário do que se possa crer, não é trivial. Embora materialmente iguais (afinal, ambas se destinam ao transporte coletivo rodoviário de pessoas), tais atividades encontram-se subordinadas a regimes jurídicos completamente diferentes.

Em se tratando de atividade eminentemente privada, o fretamento se orienta pela liberdade contratual dos interessados na prestação do serviço, bem como pela livre concorrência e pela busca do lucro. É serviço franqueado aos agentes econômicos que cumpram os requisitos gerais decorrentes do exercício do poder de polícia (por exemplo, obtenção de autorização prévia para a execução do serviço; motorista habilitado para conduzir veículo de grande porte; manutenção da adequada condição dos veículos etc.).

Com relação ao transporte público, prestado pelo Estado mediante delegação à iniciativa privada, incide um conjunto mais gravoso de requisitos e de vedações a serem observados pelos concessionários. Tais agentes econômicos – mesmo antes de serem considerados concessionários – devem demonstrar capacidade para o desempenho do serviço público concedido, além de terem de fazê-lo por sua conta e risco, e por prazo determinado (artigo 2º, II, da Lei 8.987/1995).

O serviço a ser prestado deve ser adequado ao pleno atendimento dos usuários: para tanto, deve satisfazer “as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas” (artigo 6º, § 1º). Não é tarefa fácil conciliar o atendimento destes e de vários outros requisitos, todos decorrentes do regime jurídico dos serviços públicos, com a busca do lucro, que, por sua vez, também é elemento estruturante do arcabouço normativo do regime de concessões.

As diferenças não terminam aqui. Os itinerários a serem cumpridos pelos concessionários são previamente definidos pelo poder público; o serviço de fretamento, ao revés, será executado a partir da configuração da demanda. Em outras palavras, ao passo que os concessionários devem cumprir os itinerários e horários determinados pelo Estado, independentemente da existência de demanda, o serviço de fretamento somente será prestado quando deflagrada a demanda. Plataformas de fretamento colaborativo funcionam como um canal para concentração e distribuição da demanda por transporte coletivo, conectando potenciais passageiros às empresas de fretamento.

Os concessionários do transporte coletivo obtêm lucro a partir da lógica dos subsídios internos (ou cruzados), em que a receita tarifária auferida em itinerários de grande demanda e curto deslocamento compensa os custos incorridos no atendimento a itinerários menos procurados pelos passageiros. Essa lógica “compensatória” mantém a sustentabilidade do modelo de concessão, e permite, na melhor medida possível, que os concessionários atendam aos deveres que lhes são impostos na execução do serviço público outorgado (notadamente, a modicidade tarifária).

Nessa perspectiva, é natural que o transporte coletivo na modalidade de fretamento se dê mediante circuito fechado, porque intrínseco à sua própria configuração: em todos os seus usos e aplicações, até a concepção do chamado fretamento colaborativo, o fretamento de veículo para transporte coletivo de passageiros destinava-se a transportar, nos trajetos de ida e de volta (circuito), um mesmo grupo de pessoas (fechado, portanto), relacionadas entre si por um objetivo comum (uma equipe de futebol indo disputar uma partida, ou um grupo de estudantes em excursão escolar, por exemplo).

É em tal perspectiva que se pode compreender os requisitos estabelecidos pela lei ou por normas infralegais, como o circuito fechado ou a apresentação de relação nominal de passageiros. Eles buscam preservar características fundamentais do regime jurídico do transporte coletivo de passageiros. Cogita-se, sobretudo, de preservar a execução do serviço público de transporte coletivo dentro de parâmetros considerados desejáveis pelo legislador e pelo regulador.

Da delimitação do escopo de atuação do fretamento decorre a tutela de interesses dos cidadãos que habitam regiões afastadas dos grandes centros urbanos, nas quais a única oferta de transporte coletivo é justamente aquela decorrente da execução de contrato de concessão de serviço público. O objetivo do estabelecimento de requisitos e balizas à execução da atividade de fretamento é manter vivo o próprio regime de execução do serviço público de transporte coletivo, porquanto o aumento predatório da oferta do serviço de fretamento em regiões de maior demanda (resultante da inexistência de limitações) tornará completamente insustentável a modelagem do regime de concessão.

Grande parte da demanda pelo serviço de fretamento colaborativo se concentra nos grandes centros urbanos e em conhecidas rotas turísticas. Ocorre que é da exploração dessas mesmas rotas que os concessionários do serviço público auferem receita capaz de contrapor os custos necessários à manutenção de linhas pouco rentáveis, independentemente da existência de demanda suficiente.

Embora possível, o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão não é desejável. Sabe-se que eventual redimensionamento tarifário reverterá, ao fim e ao cabo, em desfavor dos usuários do serviço público de transporte coletivo, que se verão compelidos a arcar com tarifas mais altas. No limite, isso pode se traduzir na impossibilidade de que muitos cidadãos se utilizem do transporte coletivo intermunicipal.

É por isso que realizar esse debate, de forma séria, serena e com base na realidade de um país com dimensões continentais e com infraestrutura de transporte ainda tão precária como o Brasil é tão necessário e importante. Trata-se de tema fundamental que precisa ser encarado com firmeza por todos os Poderes, cada qual em sua esfera e competência, sob o risco de, se não o fizermos corretamente, colocarmos em xeque definitivamente o próprio serviço público de transporte coletivo intermunicipal no país.

 

Fonte: JOTA